29 de maio de 2025

Marcas dolorosas e invisíveis: a violência nossa de cada dia


Foto: Ibraheem Abu Mustafa/ReutersREUTERS/Ibraheem Abu Mustafa

A violência é uma cicatriz que o tempo não apaga, apenas atenua. Lembro-me das duas vezes em que fui assaltado em Fortaleza, revividas agora ao ler o relato da professora Fernanda Leal. Na primeira, dentro de uma locadora, a arma apontada, o chute nas costas, o tiro que ecoou a centímetros da minha cabeça. Na segunda, dentro de um ônibus, o cano frio do revólver pressionando meu abdômen. Anos se passaram, mas o corpo ainda guarda a memória do medo. Superei o trauma ao enfrentá-lo, disparando um revólver em um clube de tiro, com um instrutor ao lad, eu com dificuldade para segurar a arma, imagine acionar o gatilho e depois conseguir fazê-lo por mais vezes, até que o pavor virasse apenas lembrança. Mas quantos carregam essas marcas sem jamais se libertarem?  


A violência nos reduz à nossa fragilidade. Humilha, paralisa, rouba mais que objetos — rouba a sensação de segurança. E, no entanto, sei que minha experiência é ínfima perto do que outros sofreram e sofrem: as vítimas da ditadura, torturadas até o delírio ou a morte; as crianças de Gaza, esmagadas sob os escombros de uma guerra sem fim. Se meu trauma foi um rio, o deles é um oceano de dor. E isso revela uma verdade cruel: a violência é uma linguagem universal, mas sua escala define quem somos como humanidade.  


Precisamos de mais que leis — precisamos de um código moral que una povos, que transcenda a Declaração dos Direitos Humanos, ainda tão violada. Um pacto que não apenas condene a barbárie, mas que a impeça de renascer. Porque a violência não é só física: é a fome que corrói, a desigualdade que esmaga, a indiferença que normaliza o sofrimento alheio.  


A paz não será um acaso histórico, mas uma construção diária. Começa com a recusa à naturalização da crueldade, com a empatia que nos faz enxergar no outro um igual. Se meu trauma me ensinou algo, foi que o medo pode ser vencido, mas a injustiça só se dissolve com ação.  


Não basta lamentar. É preciso exigir um mundo onde nenhuma criança precise temer bombas, onde nenhum jovem seja reduzido à escolha entre a arma e a fome. O futuro não será melhor por acidente — será porque o construímos assim. E isso começa hoje, na recusa ao silêncio, na coragem de transformar indignação em movimento. A humanidade já sangrou demais. Proteste! Reclame! Grite! Chega!

28 de maio de 2025

A Sombra que Segue em Mim


Quarenta e oito anos se passaram, mas o cheiro do café da madrugada, o sussurro no ouvido chamando, “Antõe Guede, olha a caça!” e o tilintar da cartucheira ainda ecoam em mim como um chamado silencioso. Meu pai partiu num dia como este, deixando para trás um menino de quatorze anos que, de repente, teve que aprender a andar sem a grande sombra que o guiava. Hoje, com doze anos a mais do que ele tinha quando se foi, descubro que essa sombra nunca realmente me abandonou – apenas se fundiu à minha própria.

Lembro das nossas caçadas antes do sol nascer, quando o mundo ainda era feito de mistérios e a caatinga respirava segredos. Eu, de baladeira em punho, seguia seus passos como um aprendiz de vida, pisando o mesmo cascalho que ele pisava, enfrentando os mesmos medos – das cobras que eu imaginava, penduradas nas árvores, dos fantasmas que minha mente infantil inventava. Ele não me ensinou apenas a caçar ou pescar; me ensinou a ler o silêncio, a decifrar os sinais do mato, a entender que a sobrevivência muitas vezes vem com suor e paciência. Cada pássaro abatido em pleno voo, cada peixe fisgado no riacho raso ou no açude, não era só alimento – era uma lição de resistência.

Seu cheiro – uma mistura de poeira, suor e cigarro – ainda habita minhas memórias como um perfume sagrado. Lembro das espinhas e cravos que espremia em suas costas largas, da cartucheira na cintura, do jeito meticuloso como preparava cada expedição, por mais simples que fosse. Naquela época, eu não sabia que esses momentos se tornariam tatuagens eternas num local que, por falta de melhor definição, eu chamo de alma. Hoje, quando fecho os olhos, vejo suas mãos calejadas amarrando anzóis e tecendo as malhas de uma tarrafa, seu sorriso contido quando eu acertava um alvo difícil.

Não sei como seria minha vida se ele tivesse ficado. Talvez mais leve, talvez mais dura – não importa. O que sei é que ele nunca realmente se foi. Vive nas minhas escolhas, nos meus dilemas, na pergunta que sempre faço: "O que ele pensaria disso?" Às vezes, sinto sua voz sussurrando conselhos, outras vezes, uma repreensão silenciosa quando enveredo por caminhos tortuosos. Ele se tornou minha bússola moral, um farol que, mesmo invisível, nunca deixa de iluminar.

E assim sigo, carregando-o dentro de mim – não como um peso, mas como uma força. Gratidão não é a palavra certa; é algo mais profundo, mais visceral. É a certeza de que, mesmo sem querer, ele me moldou não apenas com suas palavras, mas com seu exemplo. Até mesmo o violão, eu aprendi a tocar como uma resposta a ele, que não quis ensinar aos filhos a arte que ele mesmo abandonou. E se hoje sou quem sou, é porque um dia fui o menino que caminhava atrás dele, tentando pisar nas mesmas pegadas. A vida o levou cedo demais, mas ele conseguiu, em tão pouco tempo, plantar em mim raízes que nem o tempo conseguiu arrancar. E enquanto eu viver, ele também viverá – não como saudade, mas como presença. Afinal, os pais nunca morrem. Apenas se tornam parte do vento que a gente sente nas costas, empurrando a gente para frente.


Rangel Junior



27 de maio de 2025

A Sinfonia das Pequenas Coisas


O dia começou envolto em névoa, um véu delicado que escondia os telhados e transformava a paisagem em algo quase etéreo. Enquanto a neblina dissipava lentamente, a água da fonte no quintal jorrava em um ritmo sereno, convidando-me a uma pausa. Após uma boa noite de sono, dez minutos de meditação bastaram para que eu sentisse a energia renovada, como se a quietude daquele instante tivesse o poder de recarregar a bateria da alma. Era um lembrete singelo de que a tranquilidade não está nos grandes eventos, mas nos intervalos silenciosos entre eles.  


No jardim, as carpas coloridas deslizavam pela água com graça hipnótica, seus movimentos sinuosos pintando traços de beleza efêmera. Os lírios vermelhos, que cuidamos como uma homenagem à minha mãe, estavam em plena floração, espalhando pelo ar não apenas seu perfume, mas também memórias afetivas que resistem ao tempo. Cada pétala parecia sussurrar que a vida, por mais breve que seja, é repleta de delicadezas que merecem ser notadas. Quantas dessas pequenas maravilhas passam despercebidas na correria do cotidiano?  


O café quente trouxe consigo um aconchego, além do paladar — um verdadeiro abraço por dentro, um ritual diário que aquece corpo e espírito. Do lado de fora, a cidade despertava em uma cacofonia de sons: motores, buzinas, latidos, o canto alegre dos pássaros. Até os pardais, em sua algazarra despretensiosa, contribuíam para a sinfonia urbana, sempre única e cambiante. Era como se cada dia fosse uma nova apresentação, com músicos diferentes e partituras improvisadas.  


Os quarenta minutos de exercícios, o banho revigorante, a cama arrumada com cuidado—tudo isso compunha um ritual de autoconhecimento e gratidão. Não eram gestos grandiosos, mas tinham o poder de estruturar o dia com sentido. E, no fim, era isso que ficava: a certeza de que a felicidade não está nos holofotes, mas nos detalhes que muitas vezes ignoramos.  


Viver plenamente é saber que cada instante é irrepetível. A névoa vai se dissipar, as flores murchar, o café esfriar — mas enquanto duraram, foram perfeitos. E é nessa fugacidade que reside a beleza da existência: na capacidade de encontrar alegria no efêmero, de celebrar o aqui e agora como se fosse a única coisa que realmente importa.


Rangel Junior 


26 de maio de 2025

A Felicidade é uma gota de éter


A felicidade às vezes é vendida como um tesouro a ser perseguido e conquistado. Ela não pode ser confundida com um destino. A felicidade é o vento que passa entre os dedos quando pedalamos na chuva, é o café que esfumaça na xícara enquanto os filhos contam histórias com a boca cheia. É o vinho servido lentamente no fim do dia, quando a casa já dorme e só resta o sussurro de um "eu te amo" antes do escuro.


Insistem em vendê-la como um prêmio dourado, mas ela prefere se esconder em detalhes: um cuscuz fumegante no centro da mesa,  o miado dengoso de uma gatinha pedindo cafuné, a bicicleta velha e suja que recebeu um banho e um polimento, que deixou uma pontinha de ingênuo orgulho. 


Saí cedinho, sob chuva fina, enquanto o mundo ainda resmungava debaixo dos lençóis. Voltei encharcado, mas com aquela alegria de quem roubou um segredo do dia. Camilla me esperava com o café quente e os filhos adolescentes em luta contra o sono. A felicidade, ali, transitava entre um sanduíche mordido às pressas e a missão banal de dirigir até João Pessoa. Afinal, até no trânsito entediante cabem risadas, playlists improvisadas e uma mão pousada na perna como um lembrete: "Estamos juntos nessa".  


No almoço com Taiguara, a felicidade veio disfarçada de fava e dobradinha fervendo e boas resenhas sobre a música antiga, que rolava ao vivo. Após o almoço, era o café feito por ele, cuidadoso como um ritual, e a bicicleta que deixei lá — velha conhecida, agora ajustada e brilhando, um símbolo de que coisas boas circulam entre nós, sem dono fixo.


Até Solanja, a cadela adotada por ele e Mayara, brincando com Guilherme e Vinícius, parecia rir da nossa alegria, enquanto eu lembrava de tempos em que Taiguara era só um menino com os joelhos ralados.  


Na volta, a estrada noturna nos envolveu. Jantamos tapiocas que nem foi essa coisa toda, mas o momento, sagrado. Dirigindo, pensando e observando os meninos no banco de trás, e eu pensei em como a felicidade é um animal noturno: aparece quando a gente menos espera, lambe os nossos cotovelos e some, deixando só o cheiro dela no ar. Ali, eu me senti um ladrão de instantes, guardando cada um no bolso.  


Em casa, o vinho escorreu rubro nas taças, e conversamos bobagens sérias — como o fato de que ninguém ensina a ser feliz, só a perseguir coisas que supostamente trarão felicidade. Entre risos e reflexões, eu disse que, se fosse um líquido, a felicidade seria éter: você sente o frescor por um segundo, e depois só resta a memória do que foi. Mas ah, que segundo! E quantos deles a gente coleciona sem perceber: um beijo roubado na cozinha, uma piada idiota no trânsito, o silêncio que não é vazio, mas cheio de cumplicidade.  


Deitar ao lado dela, naquela cama bagunçada de histórias, foi meu ato mais revolucionário do dia. A felicidade não é um palácio — é o chão que a gente varre juntos, os chinelos embaralhados, o "boa noite, meu amor" que ecoa no escuro como uma promessa antiga. E no fim, descobri que ela não precisa durar: basta que a gente reconheça seus disfarces. Afinal, quem precisa de eternidade se tem um café quente, uma bike na chuva e alguém para dizer "até amanhã"?  


Rangel Junior 


25 de maio de 2025

Chuva, Pedais e Algumas Lições


A manhã começou cinzenta, daquelas que convidam ao café prolongado e à preguiça debaixo do cobertor. Os amigos, um a um, foram desistindo do pedal: " não dá, pois aqui a chuva está indo e voltando", "Vai ficar tudo encharcado", "Melhor deixar pra outro dia". Eu, porém, resolvi encarar. Não havia temporal, apenas uma garoa tímida — e bicicleta, como se sabe, não derrete.  

Saí sozinho. A neblina colou no rosto como um véu úmido, e as primeiras gotas me fizeram rir baixo, como quem descobre uma brincadeira secreta. O asfalto brilhava, e eu reduzi a velocidade, evitando as estradas de terra que, com a água, se transformariam em atoleiros. Segui pelo acostamento da BR 230 até a PRF e voltei pela Alça Leste, passando pelo Campos do Conde até o Centro de Convenções, onde o mundo parecia ter acordado devagar, sob o mesmo chuvisco insistente. 

Sem garrafa d’água, improvisei: abria a boca como um passarinho sedento, bebendo as gotas que caíam. Cheguei em casa encharcado, é claro, mas com os 22 km percorridos gravados no corpo como uma medalha invisível. Não foi um trajeto heroico, apenas um daqueles pequenos desafios que a gente se impõe para lembrar que ainda sabe surpreender a si mesmo. 

No caminho, a cidade me mostrou sua rotina teimosa. Homens pedalavam para o trabalho, equilibrando marmitas e esperanças; um grupo rumava para um jogo de futebol, as bikes tilintando como um rebanho desengonçado. Mulheres com sombrinhas coloridas cortavam a chuva como navios em miniatura. Na rua Fernandes Vieira, do José Pinheiro, uma senhora dentosto enrugado fumava seu cachimbo na calçada, indiferente ao tempo, enquanto uma mulher puxava um cachorrinho relutante, os dois negociando cada passo. E, surpresa: centenas de corredores enchiam a pista, participando de uma prova que a chuva não cancelou.  

Esta manhã me ensinou algo óbvio, mas fácil de esquecer: os obstáculos não existem para nos parar, e sim para serem contornados, furados ou — quem sabe? — abraçados. Desistir é a única escolha que realmente empobrece o caminho.

Problemas vão surgir, a chuva vai cair, as ladeiras vão parecer mais íngremes (ah, a subida do Alphaville!), mas é seguindo que a gente descobre o prazer escondido nas coisas simples: no sabor da água que vem do céu, no cheiro da terra molhada, na coragem anônima de quem insiste em ir adiante, guarda-chuva ou não.  

No fim, voltei para casa molhado, cansado e feliz. Porque a vida, como a bicicleta, só se equilibra em movimento. E, às vezes, é preciso pedalar na chuva para lembrar disso.